sábado, 14 de junho de 2008

Literatura Negra














Pós graduação letras UFBA

Negros afro


Identidade negra






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Literatura Negra

Saída da revolta, da rebelião contra a situação de marginalidade à qual foi geralmente condenada, a literatura negra aparece como uma forma privilegiada de auto-conhecimento e da reconstrução de uma imagem positiva do negro. O conceito de literatura negra emerge da prórpia característica dos signos que estão em um perpétuo movimento de rotação: os signos que nos exilam podem ser aqules que nos constituem em nossa humana condição (cf. Octavio Paz, 1982). A apariação do que denominamos literatura negra está, pois ligada à compreensão desta rotatividade: um mesmo signo - negro - pode remeter à idéia de ofensa e de humilhação ou ser assumido com orgulho. A prática de um recentramento estético e cultural é a principal componente das literaturas negras, independentemente da língua através da qual se exprimem e do país de onde são originárias.

O fato de justapor um adjetivo à palavra literatura é sempre problenático na medida em que as etiquetas correspondem à necessidade de delimitar o conceito e circunscrever sua amplitude. Se as classificações fundadas na idéia de nação correm o risco de ser problemáticas, elas se tornam ainda mais nos casos onde a pertença a uma comunidade linguística ou étnica é mais significativa que a pertença a um país. Quando a classificação tem a ambição de dar conta do sexo (literatura feminina ou feminista) ou da raça (literatura judaica ou negra) dos escritores, as etiquetas correm o risco de tornarem-se heterofóbicas. Em estudos anteriores (Bernd, 1988), criticamos a definição de literatura negra associada à raça, ou simplesmente à cor da pele do autor. Tal classificação de tipo racial ou epidérmico é ideologicamente perigosa e cientificamente falsa.

Se as diversidades culturais não têm relação direta com as raças, é impossível, do ponto de vista científico, estabelecer relações entre uma determinada etnia e a produção de bens culturais. Não há, portanto, nenhuma correlação entre as características psicofísicas dos negros e as culturas por eles produzida. A hipótese de definir poesia negra pelo critério da cor da pele dos indivíduos foi portanto excluída de saída, dada a inexistência de fundamentos científicos que sustentem as correlações etnia/sensibilidade.

A segunda possibilidade seria escolher a temática como categoria para estabelecer o conceito de literatura negra. Este crtério seria também uma armadilha na medida em que a figura do negro, como escravo ou como homeme livre, emerge na literatura brasileira desde as primeiras manifestações literárias até asproduções mais recentes. O critério temático não teria pois funcionalidade: as contribuições de diferentes culturas africanas sincretizaram-se a tal ponto que qualquer tentativa de decantá-las seria totalmente supérflua.

Qual seria então a justificativa da apelação literatura negra? Contrariamente ao que se passa no Caribe onde os escritores protestam contra os asfixiantes prefixos tais como: “negro-africano”, “afro-americano”, no Brasil, a expressão literatura negra corresponde a uma reivindicação da parte de bom número de escritores afro-brasileiros que concebem a prática da escritura literária como um espaço propício à enunciação da reconstrução identitária, em crise após a desctruição brutal representada por um longo período escravista.

Neste sentido, o único critério possível para conceituar uma escritura negra seria o critério discursivo: a emergência de um eu enunciador que se quer negro é o elemento-chave que singulariza as obras. O surgimento de um eu-enunciador que assume sua condição de negro e de brasileiro constitui um espécie de divisor de águas entre um discurso sobre o negro, que sempre existiu na literatura brasileira, e um discurso do negro que corresponderia ao desejo de renovar a representação convencional construída ao longo dos séculos, quase sempre carregada de preconceitos e de estereótipos.

A sabotagem da tradição, a inversão da ordem, de modo a alterar a situação que relegava a literatura ao espaço da sombra, orientaram sua trajetória cujo princípio fundamental não poderia ser outro que a reapropriação sistemática de um esquema referencial fundador que teria como conseqüência a delimitação de um novo território (Deleuze e Guattari, 1977). Será, portanto, sob o signo do marronnage cultural de que fala René Depestre que Calibã vinga-se de Próspero, inscrevendo no tecido poético os dispositivos de transformação ideológica da consciência individual. Esta consciência torna-se autônoma quando chega a libertar-se do discurso mistificador da dominação. Tal autonomia só estará, contudo, completa quando a poesia permitir pensar o mundo como aceitação da diferença e conseguir modificar o atual sistema de representação onde um é sempre o bárbaro do outro.

A importância da emergência do eu-enunciador que se quer negro não está apenas no fato de assinalar uma ruptura com o discurso social que negava os negros, mas também por marcar, de maneira definitiva, a tentativa de compreender o que significa ser negro nas Américas. Não sendo mais africanos, nem brancos, sentindo-se tratados como brasileiros de segunda classe, identificando-se apenas parcialmente com o cânone ocidental, praticando uma religião amplamente sincretizada, não restava outra saída aos descendentes de ex-escravos do que empreender - através da palavra poética - um lento processo de rememoração dos vestígios (la trace) de sua história e de resgate dos fragmentos de narrativas ancestrais para, a partir daí, iniciar o processo (inacabado) de redefinição identitária.

A preocupação de mostrar a cara, de convocar a comunidade para exorcizar seu complexo de inferioridade por ser negro, logo o exercício de afirmação individual e coletivo é, em nosso contexto, muito mais premente do que afirmar sua pertença à nação brasileira, como ocorre, por exemplo, com os poetas africanos lusófonos para os quais a urgência está em afirmar sua vinculação às nações que acabam de emergir autonomamente, após um longo período de passado colonial. Deste modo, raras vezes a preocupação com o nacional aflora na poesia negra brasileira, havendo freferentemente um sentimento de solidariedade para com os outros negros da América, um desejo de ultrapassar - em termos de identidade - as fronteiras do nacional.

Bibliografia:

BERND, Zilá. Literatura negra. In JOBIM, J.L., org. As palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992. P. 267-276.

BERND, Zilá. O que é negritude. São Paulo: Brasiliense, 1988.

BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988.

DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Kafka: pour une littérature mineure. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

PAZ, Octavio. O arco e a lira: Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982.

Zilá Bernd

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O negro na literatura brasileira: a necessidade de um novo paradigma de crítica social e literária

A história da África e seus habitantes, especialmente os que foram trazidos para o Brasil como escravos e seus descendentes, ou seja, todos nós, transformou-se, ainda que tardiamente, em componente curricular obrigatório. Talvez não a obrigatoriedade mas o privilégio de saber sobre o continente africano devesse nos impulsionar a descobrir mais sobre uma terra tão íntima e ao mesmo tempo estranha, próxima e distanciada.

Há mesmo quem chegue a pensar que a África é um país e não um continente. E normalmente esse país é pensado como um lugar onde habitam povos “primitivos” que vivem em tribos em meio à floresta cheia de animais selvagens. (ADINOLFI, 2005: p.1)

Estes e outros estereótipos encontram-se amplamente divulgados pelos meios de comunicação e pelo próprio sistema educacional, ainda representando extensões do pensamento europeu do final do século XIX, até então considerado científico, mas que veiculou informações menos científicas do que ideológicas sobre o continente africano, a fim de justificar o sistema de dominação colonial.

Forjou-se um conceito de raças humanas pressupondo uma hierarquia em cujo topo estava, evidentemente, o branco (caucasiano). Na base estariam os povos africanos e outros de pele escura, como os aborígenes australianos, vistos como “incapazes”, “preguiçosos”, “atrasados”, “selvagens” que só poderiam ser salvos pela ação da colonização européia. (Idem, Ibdem)

O outro lado da moeda que estampa o africano incapaz e atrasado revela o branco superior e desenvolvido. A teia de conceitos confunde ciência com ideologia, individualidades com estereótipos, verdades com vontades, onde se tece uma outra forma de cativeiro: a escravidão simbólica que irá castigar incansavelmente a auto-estima dos afrodescendentes.

O texto literário do século XIX, ansioso por configurar nossa identidade nacional, deixa escapar as contradições de uma sociedade que deseja acompanhar os modelos da modernização européia, beneficiando-se ainda da herança nefasta da escravidão.(SCHWARZ, 1990) A literatura oficial brasileira, acompanhando o modelo social hierarquizado, teria desprestigiado as atuações das etnias diferenciadas até o início do século XX, à exceção de Lima Barreto e Solano Lopes que, mesmo assim, só bem mais tarde receberam algum reconhecimento. A representação dos negros na literatura ficaria restrita a alguns estereótipos, entre os quais, aqueles do negro dócil, castigado, submisso, ou, por outro lado, bestial, instintivo, carnal. Assim, ocorreu um processo que substituiu a invisibilidade por uma visibilidade estereotipada, que felizmente existiu para que pudesse ser desmentida, tal como aparece em Solano Trindade ao revelar o homem negro como um ser humano em sua complexidade, sujeito de uma escritura:

Eu tenho orgulho de ser filho de escravo...

Tronco, senzala, chicote,

Gritos, choros, gemidos,

Oh! que ritmos suaves,

Oh! Como essas coisas soam bem

nos meus ouvidos...

Eu tenho orgulho em ser filho de escravo.

No entanto, a literatura encontra-se povoada por estereótipos de todas as cores: desde o Gaúcho de Alencar, que cavalgava pelos pampas sem subjetividade, à donzela pálida e assexuada, passando pelo índio homenageado por bom comportamento, o português rústico, o sertanejo jeca ou o nordestino retirante. Quanto à representação do negro, identificam-se dois grupos de autores: um deles representando os personagens negros a partir de estereótipos que apenas reproduziriam o modelo social hierarquizante; e um outro que busca subverter essa representação. Porém, talvez seja impróprio compará-los e, principalmente, cobrar dos primeiros o amadurecimento de uma consciência étnica e crítica que se construiu a partir de um processo histórico e estético que apenas o segundo grupo vivenciou.

Então, podemos indagar: Quando os negros participam da produção literária em forma de estereótipo, não seria possível encontrar do outro lado dessa moeda desvalorizada o branco também preso ao seu próprio estereótipo? Ah! Mas aí seria um estereótipo positivo, já que o europeu seria representado como o Senhor, como aquele que segura o cabo do chicote. No entanto, se compreendemos essa representação como “positiva”, não estaríamos compartilhando o mesmo ideário, a mesma concepção eurocêntrica que preparou tais dicotomias? Será que a concepção da negritude é uma capacidade epitelial?

Talvez esse sentimento dependa menos da origem do que da capacidade de duvidar de verdades construídas para proteger interesses, ou da vontade de verdade ocidental, que engendrou conceitos como raça, pureza, desenvolvimento etc. (NIETZSCHE, 1992) No entanto, reproduzir a ideologia dominante não caracterizaria necessariamente uma literatura não-negra, mas uma literatura não-crítica. Mas isso é igualmente uma classificação imprópria, principalmente se levarmos em consideração que os silêncios do texto também significam algo; que nós podemos detectar o que foi silenciado, como detectamos o silenciamento dos personagens negros, de seu aprisionamento em estereótipos, do mesmo modo que podemos observar o sacrifício e o sofrimento de Peri e Iracema, por mais que Alencar desejasse afirmar a harmonia do encontro entre o colonizador e o índio, ou tapar o sol com a peneira, como diz o ditado popular.

Uma outra personagem feminina, desta vez não uma índia mas uma mulata, teria recebido um tratamento inadequado pelo poeta Gregório de Matos. É em relação ao tratamento dispensado à mulher que o poeta estabelece uma nítida distinção entre as raças. Assim, ele retrata a mulher branca como um ser angelical – anjo no nome, angélica na cara – para deixar patente a sua inacessibilidade como ser superior, enquanto a visão que projeta da mulher negra corre em direção contrária, de modo que o rebaixamento no seu tratamento contrasta com a divinização emprestada à mulher branca. Daí, enquanto Maria é definida como santa, anjo ou deusa, à personagem Jelu não seria dispensado tratamento semelhante, restando-lhe os atributos que pertenceriam ao “sórdido”, “impuro” ou “bestial”:

Jelu, vós sois rainha das mulatas.

E, sobretudo, vós sois rainha das putas.

Tendes o mando sobre as dissolutas

Que moram nas quitandas dessas gatas.

Assim, em contraste com a visão de amor platônico retratada no soneto que Gregório dedica a Maria, Jelu é transfigurada, sem a menor cerimônia, em gata dissoluta.(NASCIMENTO, 2006:p.59) Portanto, o poeta seiscentista ainda não transgride uma concepção de mundo baseada em dicotomias e hierarquias. No entanto, observando isso, poderíamos nos perguntar se tal paradigma classificativo é facilmente superável.

Afinal, quando um determinado paradigma de escolha nos incomoda – carnal em vez de espiritual, pureza em vez de luxúria, bestial em vez de humano, puta em vez de santa –, isso significa que ainda estamos operando nos termos de seu modelo dicotômico e hierarquizante, ou seja, que não superamos ainda a velha cartilha do pensamento ocidental que classificou os africanos como inferiores, incapazes e feios, enquanto ressaltava a inteligência, a beleza e a superioridade do europeu.

No fundo, o que efetivamente nos incomoda é a possibilidade de sermos identificados como pertencentes aos “impuros” ou “inferiores”, mas não propriamente a existência do modelo cultural que opera com dicotomias. Ora, pensando ou sentindo nesses termos, embora não conscientemente, o trabalho de crítica não está livre de reproduzir a mesma concepção de mundo daqueles que, antes de escravizarem os africanos, escravizaram os paradigmas de verdade e autoproclamaram-se modelos de excelência cultural, social ou racial.

por ROSÂNGELA BOYD DE CARVALHO

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